“Uma longa viagem começa com um único passo.”
Lao-Tsé
Qualquer um que já fez um projeto de pesquisa já foi obrigado a criar uma seção de “planejamento” ou “cronograma”. Não sei vocês, mas quando era estudante de pós-graduação eu jamais utilizei a seção de planejamento dos meus projetos de pesquisa para nada! Quando eu digo nada, eu quero dizer absolutamente nada! Jamais olhei para essa seção após a ter escrito e simplesmente ignorei a sua existência para sempre. Igualmente, nenhuma instituição de financiamento em pesquisa, orientador ou banca jamais me perguntou sobre ela. Para todos os efeitos, o “cronograma” elaborado era mera formalidade burocrática, sendo inútil para qualquer fim prático. Quando eu realmente tentava fazer um planejamento de pesquisa sério, para poder me organizar pessoalmente – normalmente quando todos os prazos do cronograma inicial já estavam estourados –, eu achava a tarefa inacreditavelmente complicada. Então, isso me leva à questão: por que o planejamento de pesquisa é tão difícil?
Neste pequeno ensaio eu tento elaborar um diagnóstico sobre essa questão, sobre o porquê de o planejamento de pesquisa ser tão difícil e a razão das práticas usualmente adotadas (que eu chamo de planejamento “estilo gráfico Gantt”) costumam ser absolutamente inúteis. Os pesquisadores raramente estudam a sério as práticas de planejamento, que são uma área muito avançada da administração. Talvez por isso, eles estejam apegados a uma visão de planejamento ultrapassada, além de absolutamente inconsistente com a prática de pesquisa. O planejamento “estilo gráfico Gantt” é adequado para tarefas repetitivas e mecânicas, como são algumas obras de engenharia, mas são inconvenientes para trabalhos criativos, como é a pesquisa. Então, proponho repensar o planejamento de pesquisa a partir da ideia do planejamento por etapas, inspirado na filosofia kaizen. Com isso, podemos fazer com que o planejamento deixe de ser mera exigência inútil aos projetos de pesquisa e passe a ser uma prática que realmente ajude a pesquisa a ser mais eficiente e menos desgastante para os pesquisadores.
O modelo tradicional de planejamento em pesquisa
Atualmente, as seções de planejamento constantes nos projetos de pesquisa, não importa se é para TCC, mestrado, doutorado, iniciação científica ou concorrência a financiamento, se parece com o seguinte:
Esse padrão de exposição das etapas de um projeto é chamado de “gráfico Gantt”, em homenagem a Henry Gantt, professor de engenharia de produção que foi assistente de um dos pais da administração, Frederick Taylor. Não por acaso, o gráfico Gantt é intensamente utilizado em administração de empresas e em obras de engenharia, muitas vezes em versões bem mais sofisticadas que as usadas em planejamento de pesquisa.
Nos projetos de pesquisa, o gráfico Gantt é muitas vezes o único item da seção de planejamento, em geral referido apenas como “cronograma”. Porém, como falado acima, ele raramente tem algum impacto real na pesquisa. Nós nos acostumamos a ver esse cronograma como mera exigência das universidades e instituições de financiamento de pesquisa, mas nunca como um plano real para nossas pesquisas.
Eu sou fascinado por técnicas de planejamento desde que tive o primeiro contato com elas, durante meu curso de formação para a carreira de Especialista em Políticas Públicas, no Estado de São Paulo. Eventualmente, tentava implementar essas técnicas de planejamento, aprendidas em cursos de administração, para minha organização pessoal durante meu mestrado e doutorado. Porém, rapidamente percebi que fazer um planejamento sério de pesquisa era bem mais difícil do que pensava. A simplicidade que o gráfico Gantt sugeria, com tarefas bem delimitadas e datas de início e fim precisas, rapidamente se mostrou completamente impossível, para não dizer ridícula. A prática de pesquisa é que muitas vezes fazemos tudo ao mesmo tempo. Por exemplo, normalmente os cronogramas começam com “revisão bibliográfica” e terminam com “redação”. Não posso falar por todo mundo, mas eu faço revisão bibliográfica até o último dia (ou pelo menos até o último mês) e começo a escrever desde o primeiro dia (afinal, escrever é pensar no papel). Igualmente, sempre existem uma série de adversidades da vida cotidiana que afetam o planejamento: você ou seus familiares ficam doentes, temos crises pessoais, surgem congressos para submeter, aulas para assistir (ou ministrar), trabalhos para entregar, oportunidades que surgem e não podem ser perdidas e por aí vai… Mesmo que você tenha uma saúde de ferro e não faça absolutamente nada além da pesquisa (cheguei a ter essa situação durante meu mestrado e doutorado; depois que virei professor nunca mais!), a própria pesquisa bagunça seu planejamento. Dados demoram a serem obtidos, propostas iniciais se mostram inviáveis, hipóteses iniciais são rejeitadas, surgem novas questões e hipóteses que redirecionam a pesquisa, eventualmente aparecem dados novos que indicam oportunidades de pesquisa, novos caminhos que podem ser percorridos etc. Frente a essas incertezas, torna-se simplesmente inviável que saibamos exatamente a data em que cada etapa da pesquisa se iniciará e terminará com um ano de antecedência.
O planejamento “estilo gráfico Gantt” tem como pressuposto de que todas as etapas da pesquisa são mecânicas e conhecidas (tal como a construção de uma casa ou edifício). Esse é um sistema que surgiu na engenharia e é voltado para a engenharia, ou seja, a repetição de trabalhos mecânicos, onde cada etapa do processo é conhecida. A pesquisa é diferente, pois é um trabalho criativo, não um trabalho mecânico.
Podemos perceber a diferença entre o trabalho mecânico e o criativo comprando o trabalho de um pedreiro experiente e o de um romancista. O pedreiro experiente já construiu várias casas e, portanto, sabe exatamente o que fazer em cada etapa do processo. Para ele, o resultado será proporcional à quantidade de tempo e energia dispendidos. Se ele for uma pessoa organizada e não tiver nenhum contratempo maior (como ficar doente ou acidente na obra), ele terá uma boa ideia de quando cada etapa da obra iniciará e terminará. Já o romancista mesmo que tenha já escrito vários livros, sabe que cada obra é única. Ele não sabe quanto tempo demorará, nem quantas páginas terá seu livro. Tudo depende da criatividade e da evolução da história. Às vezes a inspiração vem em uma noite e ele escreve um capítulo inteiro em uma sentada, mas pode ser que ele passe meses com a síndrome da página em branco. Quem já trabalhou com qualquer processo criativo, sabe como a relação da obra com o tempo é um tanto quanto caótica.
A pesquisa compartilha muitas das características de escrever um romance. É preciso ter criatividade, experimentar caminhos novos, fazer testes, rascunhos, escrever e jogar fora o que escreveu etc. Além disso, como a pesquisa é um processo de descoberta, cada etapa nos revela um pouco das possibilidades futuras, possibilidades essas que não podem ser vistas de antemão. Quando completamos qualquer etapa de pesquisa (revisão bibliográfica, coleta de dados), temos a clara sensação de que alguns dos caminhos previamente pensados estão fechados, mas que outros caminhos novos e inesperados se abriram. Frente a essa situação, um modelo de planejamento tão fechado quanto o planejamento “estilo gráfico Gantt” não é adequado.
Como então resolver esse problema e criar um sistema de planejamento que seja útil para a pesquisa? Pensando nisso, resolvi pensar nova metodologia de planejamento, que ainda está em esboço. Abaixo, explico a linha que estou seguindo.
Por um planejamento adequado à pesquisa.
Em primeiro lugar, temos que nos perguntar: para que serve o planejamento? Ele serve para nós economizarmos recursos, principalmente o recurso “tempo”, que anda muito escasso ultimamente. Com um adequado planejamento, podemos chegar mais rápido e com menos esforço aos nossos objetivos. Igualmente, o planejamento serve para antecipar e evitar problemas. Ou seja, ele evita que sejamos vítimas de dificuldades resolvíveis (sempre existem os problemas insolúveis, na qual não podemos fazer nada). Por fim, o planejamento serve para criarmos um modelo de trabalho, para que saibamos o que fazer em cada momento, evitando aquele enorme custo mental de ter que decidir o que fazer a toda hora.
Existem muitas técnicas de planejamento disponíveis, sendo essa uma área própria de estudo (em geral em faculdades de administração). Não há nenhuma necessidade de adotar um modelo rígido, em que todas as etapas podem ser antevistas no início do processo. Ao contrário, a moderna ciência do planejamento já reconheceu há muitas décadas que estamos em um ambiente incerto, cheio de fatores importantes nas quais não temos controle. Esse modelo de planejamento muitas vezes é conhecido como “planejamento estratégico”. O planejamento estratégico costuma pensar que existem vários cenários possíveis, determinados pela ocorrência de fatores não controlados e inesperados. Neste caso, o planejamento estratégico prescreve que se deve criar um plano para cada cenário possível. Contudo, não vejo com bons olhos a ideia de se pensar em vários cenários, pois é quase impossível imaginar todos as situações que podem ocorrer no futuro. Ao invés disso, proponho a ideia de um planejamento resiliente, que permite se adaptar facilmente às diferentes situações inesperadas que podem acontecer ao longo da pesquisa. Chamo essa metodologia de “planejamento por etapas”.
A principal inspiração para essa nova metodologia de planejamento é a filosofia Kaizen, método de administração que surgiu nos Estados Unidos, mas se popularizou fortemente entre as empresas japonesas após a Segunda Guerra Mundial. Essa filosofia prega que ao invés de pensar em grandes transformações revolucionárias, se deve pensar em pequenas melhorias, feitas com grande constância. Ou seja, não se deve pensar em tudo que se tem que fazer à frente, mas apenas no próximo passo. Esse próximo passo pode ser algo bem pequeno, como escrever uma página, ler um texto ou buscar uma base de dados. Mas se esse passo for dado todos os dias, em pouco tempo a pesquisa estará realizada. Como disse o filosofo chinês Lao-Tsé “Uma longa viagem começa com um único passo”. Quase sempre, esse primeiro passo é o mais difícil de se dar. Depois de iniciado o caminho, tudo se torna mais fácil e natural.
Particularmente, não gosto de pensar a pesquisa como uma grande obra, mas como a junção de pequenas partes. Esse pensamento evita ficar intimidado com a dificuldade do trabalho, evitando a procrastinação. Após conseguir finalizar uma pequena etapa de pesquisa, penso na etapa seguinte, que também pode ser um passo bem pequeno.
Então, como seria esse planejamento por etapas? Em primeiro lugar, se estabelece as datas importantes da pesquisa. Em geral, a única coisa que sobrevive do planejamento “estilo gráfico Gantt” são os prazos finais, provavelmente por serem determinados por agentes externos, como a data do Congresso e o prazo final para a entregar do TCC ou da dissertação de mestrado. Assim, o prazo final para entregar a pesquisa é a primeira data importante a se considerar. Pode haver outras datas importantes, como a data para viagem de campo, ou eventos terminados que exigem preparação. Por exemplo, se você for fazer uma pesquisa que só pode ser realizada durante as eleições, a eleição é uma data importante. Igualmente é o caso de uma pesquisa que só pode ser realizada no inverno ou no verão, ou durante um festival popular.
Anotados os prazos importantes, se estabelece uma lista com tudo que precisa ser feito dentro dessas datas. Não me preocupo, inicialmente, em estabelecer o número de dias que cada tarefa demorará, nem a ordem em que elas devem ser executadas, apenas anoto o que precisa ser feito. Essas tarefas (ou “coisas”) que precisam ser feitas podem ser passos importantes da pesquisa ou as seções do trabalho final. Podemos pensar um exemplo desse tipo de lista na elaboração de um artigo científico:
- Uma seção de revisão bibliográfica.
- Uma seção com estatísticas descritivas.
- Uma seção com entrevistas.
- Uma seção com dados experimentais.
Fechada a lista de coisas que precisam ser feitas, eu decido a próxima tarefa a ser realizada. A decisão sobre a próxima tarefa deve levar em conta a conveniência e a etapa em que se encontra a pesquisa. Particularmente, eu gosto de fazer as tarefas mais simples primeiro, pois assim se evita a procrastinação.
Suponhamos que a primeira etapa a ser realizada seja a revisão bibliográfica. Então eu estabeleço um tempo curto para cumprir essa etapa, de acordo com o tempo que tenho disponível. Eu ignoro momentaneamente todas as etapas posteriores e me concentro apenas no que preciso fazer agora. Isso alivia a carga mental do planejamento, pois evita se preocupar com etapas futuras da pesquisa. Também é conveniente pegar a tarefa que se está fazendo agora e desmembrá-la em tarefas menores, como por exemplo:
Etapas da revisão bibliográfica:
- Selecionar artigos de interesse na Scielo.
- Selecionar artigos de interesse em revistas internacionais.
- Fechar a lista de artigos a serem lidos.
- Ler e fichar os artigos selecionados.
Não excluo a possibilidade de desmembrar ainda mais as tarefas em novas subtarefas. Por exemplo, você pode estabelecer um prazo para ler um único artigo. Quanto menores e mais simples os próximos passos a se dar, melhor será o planejamento. Em cada passo, se deve lembrar o mantra da filosofia kaizen: o importante é o próximo pequeno passo que eu vou dar. Você ignora, momentaneamente, o que vem depois e se concentrar no que deve ser feito hoje. Também é importante produzir um pequeno resultado em cada etapa. Por exemplo, ao ler um artigo, você deve escrever um pequeno resumo do que leu, mesmo que seja apenas um parágrafo. Você verá que esses pequenos resultados escritos vão se somando e pouco a pouco vão se transformar na sua pesquisa.
Ao final de cada tarefa, volte ao seu planejamento e veja se ele continua adequado. Não tenha medo de mudar a ordem das tarefas pré-estabelecidas, bem como acrescentar e excluir tarefas. Quando você escreveu as tarefas anteriormente, você não sabia das coisas que você sabe agora, você não tinha as informações que você tem hoje. Você é mais sábio agora. Então, as decisões de agora serão melhores que as de antes. A pesquisa é um processo de descoberta, então, você não tem nenhum compromisso com as decisões do passado. Apenas não deixe de ficar atento aos prazos importantes!
Podemos resumir esse modelo de planejamento, na seguinte rotina:
- Estabelecer as datas importantes.
- Criar uma lista de tarefas que precisam ser feitas dentro do projeto (sem data nem ordem de execução).
- Decidir qual será a próxima tarefa a ser feita.
- Estabelecer um prazo curto para finalizar a próxima tarefa.
- Planejar a próxima tarefa, estabelecendo:
- Uma lista de subtarefas a serem feitas.
- A próxima subtarefa a ser feita.
- Um prazo curto para a próxima subtarefa.
- Eventualmente, um planejamento para a próxima subtarefa
- Repetir o processo planejamento das sub sub-tarefas até que o próximo passo a ser dado seja tão óbvio que não precise de planejamento, apenas de ação.
- Após terminar cada tarefa ou subtarefa, produzir algum resultado escrito.
- Voltar até o passo 3 e pensar na próxima tarefa. Eventualmente você pode acrescentar ou excluir tarefas previamente pensadas. Repetir os passos 3 a 7 até sua pesquisa estar finalizada.
A ideia desse modelo de planejamento é aumentar a frequência dos resultados de pesquisa, ainda que seja diminuindo sua complexidade. Se o prazo para a próxima tarefa for maior que algumas semanas, recomendo quebrar o planejamento em tarefas menores e mais rápidas. A soma de pequenos passos tente a te levar mais longe e mais rápido que tentar produzir um resultado grande e complexo. Normalmente, começar a andar é mais difícil que andar mais rápido.
Conclusão
A solução proposta é apenas um esboço inicial. Ainda há muito o que desenvolver. Por exemplo, o que colocar no lugar dos gráficos Gantt nos projetos de pesquisa? A princípio, acredito que nessa seção cabe colocar apenas as datas importantes e a lista inicial de coisas a fazer. Também acho que existem componentes do planejamento que merecem maior atenção, como planejamento de recursos e habilidades (softwares a se aprender, por exemplo). Prometo escrever outro artigo desenvolvendo essa questão no futuro.
Contudo, o modelo de planejamento proposto acima espelha bem melhor a prática de pesquisa, onde as etapas nem sempre se sucedem em uma ordem lógica. É comum haver uma primeira revisão bibliográfica, depois análise de resultados preliminares (onde se encontra achados surpreendentes), que levam a nova revisão bibliográfica, seguido por nova coleta de dados, nova análise, eventualmente mais revisão bibliográfica etc etc. A cada passo temos que mudar o planejamento. Acaba que a decisão fundamental é sempre o que fazer em seguida. É óbvio que, em algum momento, a pesquisa precisa ter um fim. Em minha experiência, esse fim chega quando o prazo final chega, por isso é importante estabelecer ele desde o começo. Como diria Luís Fernando Veríssimo “minha musa inspiradora é o meu prazo de entrega.”.
Gostaria de saber o que você achou da minha proposta. Você consegue seguir o modelo de tradicional de pesquisa “estilo gráfico Gantt”? Acredita que esse novo modelo de planejamento pode ajudar? Desenvolveu por conta própria outro modelo de planejamento? Têm alguma crítica à proposta acima? Não tenha medo de comentar aqui embaixo sua opinião!