Por que o planejamento em pesquisa é tão difícil? Um diagnóstico e uma proposta.

Uma longa viagem começa com um único passo.”

Lao-Tsé

Qualquer um que já fez um projeto de pesquisa já foi obrigado a criar uma seção de “planejamento” ou “cronograma”. Não sei vocês, mas quando era estudante de pós-graduação eu jamais utilizei a seção de planejamento dos meus projetos de pesquisa para nada! Quando eu digo nada, eu quero dizer absolutamente nada! Jamais olhei para essa seção após a ter escrito e simplesmente ignorei a sua existência para sempre. Igualmente, nenhuma instituição de financiamento em pesquisa, orientador ou banca jamais me perguntou sobre ela. Para todos os efeitos, o “cronograma” elaborado era mera formalidade burocrática, sendo inútil para qualquer fim prático. Quando eu realmente tentava fazer um planejamento de pesquisa sério, para poder me organizar pessoalmente – normalmente quando todos os prazos do cronograma inicial já estavam estourados –, eu achava a tarefa inacreditavelmente complicada. Então, isso me leva à questão: por que o planejamento de pesquisa é tão difícil?

Neste pequeno ensaio eu tento elaborar um diagnóstico sobre essa questão, sobre o porquê de o planejamento de pesquisa ser tão difícil e a razão das práticas usualmente adotadas (que eu chamo de planejamento “estilo gráfico Gantt”) costumam ser absolutamente inúteis. Os pesquisadores raramente estudam a sério as práticas de planejamento, que são uma área muito avançada da administração. Talvez por isso, eles estejam apegados a uma visão de planejamento ultrapassada, além de absolutamente inconsistente com a prática de pesquisa. O planejamento “estilo gráfico Gantt” é adequado para tarefas repetitivas e mecânicas, como são algumas obras de engenharia, mas são inconvenientes para trabalhos criativos, como é a pesquisa. Então, proponho repensar o planejamento de pesquisa a partir da ideia do planejamento por etapas, inspirado na filosofia kaizen. Com isso, podemos fazer com que o planejamento deixe de ser mera exigência inútil aos projetos de pesquisa e passe a ser uma prática que realmente ajude a pesquisa a ser mais eficiente e menos desgastante para os pesquisadores.

O modelo tradicional de planejamento em pesquisa

Atualmente, as seções de planejamento constantes nos projetos de pesquisa, não importa se é para TCC, mestrado, doutorado, iniciação científica ou concorrência a financiamento, se parece com o seguinte:   

Gráfico Gantt Simples

Esse padrão de exposição das etapas de um projeto é chamado de “gráfico Gantt”, em homenagem a Henry Gantt, professor de engenharia de produção que foi assistente de um dos pais da administração, Frederick Taylor. Não por acaso, o gráfico Gantt é intensamente utilizado em administração de empresas e em obras de engenharia, muitas vezes em versões bem mais sofisticadas que as usadas em planejamento de pesquisa.

Strategic plan for new business shown in a Gantt chart
Gráfico Gantt bem elaborado para abertura de negócios (Fonte).

Nos projetos de pesquisa, o gráfico Gantt é muitas vezes o único item da seção de planejamento, em geral referido apenas como “cronograma”. Porém, como falado acima, ele raramente tem algum impacto real na pesquisa. Nós nos acostumamos a ver esse cronograma como mera exigência das universidades e instituições de financiamento de pesquisa, mas nunca como um plano real para nossas pesquisas.

Eu sou fascinado por técnicas de planejamento desde que tive o primeiro contato com elas, durante meu curso de formação para a carreira de Especialista em Políticas Públicas, no Estado de São Paulo. Eventualmente, tentava implementar essas técnicas de planejamento, aprendidas em cursos de administração, para minha organização pessoal durante meu mestrado e doutorado. Porém, rapidamente percebi que fazer um planejamento sério de pesquisa era bem mais difícil do que pensava. A simplicidade que o gráfico Gantt sugeria, com tarefas bem delimitadas e datas de início e fim precisas, rapidamente se mostrou completamente impossível, para não dizer ridícula. A prática de pesquisa é que muitas vezes fazemos tudo ao mesmo tempo. Por exemplo, normalmente os cronogramas começam com “revisão bibliográfica” e terminam com “redação”. Não posso falar por todo mundo, mas eu faço revisão bibliográfica até o último dia (ou pelo menos até o último mês) e começo a escrever desde o primeiro dia (afinal, escrever é pensar no papel). Igualmente, sempre existem uma série de adversidades da vida cotidiana que afetam o planejamento: você ou seus familiares ficam doentes, temos crises pessoais, surgem congressos para submeter, aulas para assistir (ou ministrar), trabalhos para entregar, oportunidades que surgem e não podem ser perdidas e por aí vai… Mesmo que você tenha uma saúde de ferro e não faça absolutamente nada além da pesquisa (cheguei a ter essa situação durante meu mestrado e doutorado; depois que virei professor nunca mais!), a própria pesquisa bagunça seu planejamento. Dados demoram a serem obtidos, propostas iniciais se mostram inviáveis, hipóteses iniciais são rejeitadas, surgem novas questões e hipóteses que redirecionam a pesquisa, eventualmente aparecem dados novos que indicam oportunidades de pesquisa, novos caminhos que podem ser percorridos etc. Frente a essas incertezas, torna-se simplesmente inviável que saibamos exatamente a data em que cada etapa da pesquisa se iniciará e terminará com um ano de antecedência.

            O planejamento “estilo gráfico Gantt” tem como pressuposto de que todas as etapas da pesquisa são mecânicas e conhecidas (tal como a construção de uma casa ou edifício). Esse é um sistema que surgiu na engenharia e é voltado para a engenharia, ou seja, a repetição de trabalhos mecânicos, onde cada etapa do processo é conhecida. A pesquisa é diferente, pois é um trabalho criativo, não um trabalho mecânico.

            Podemos perceber a diferença entre o trabalho mecânico e o criativo comprando o trabalho de um pedreiro experiente e o de um romancista. O pedreiro experiente já construiu várias casas e, portanto, sabe exatamente o que fazer em cada etapa do processo. Para ele, o resultado será proporcional à quantidade de tempo e energia dispendidos. Se ele for uma pessoa organizada e não tiver nenhum contratempo maior (como ficar doente ou acidente na obra), ele terá uma boa ideia de quando cada etapa da obra iniciará e terminará. Já o romancista mesmo que tenha já escrito vários livros, sabe que cada obra é única. Ele não sabe quanto tempo demorará, nem quantas páginas terá seu livro. Tudo depende da criatividade e da evolução da história. Às vezes a inspiração vem em uma noite e ele escreve um capítulo inteiro em uma sentada, mas pode ser que ele passe meses com a síndrome da página em branco. Quem já trabalhou com qualquer processo criativo, sabe como a relação da obra com o tempo é um tanto quanto caótica.

            A pesquisa compartilha muitas das características de escrever um romance. É preciso ter criatividade, experimentar caminhos novos, fazer testes, rascunhos, escrever e jogar fora o que escreveu etc. Além disso, como a pesquisa é um processo de descoberta, cada etapa nos revela um pouco das possibilidades futuras, possibilidades essas que não podem ser vistas de antemão. Quando completamos qualquer etapa de pesquisa (revisão bibliográfica, coleta de dados), temos a clara sensação de que alguns dos caminhos previamente pensados estão fechados, mas que outros caminhos novos e inesperados se abriram. Frente a essa situação, um modelo de planejamento tão fechado quanto o planejamento “estilo gráfico Gantt” não é adequado.

Como então resolver esse problema e criar um sistema de planejamento que seja útil para a pesquisa? Pensando nisso, resolvi pensar nova metodologia de planejamento, que ainda está em esboço. Abaixo, explico a linha que estou seguindo.

Por um planejamento adequado à pesquisa.

            Em primeiro lugar, temos que nos perguntar: para que serve o planejamento? Ele serve para nós economizarmos recursos, principalmente o recurso “tempo”, que anda muito escasso ultimamente. Com um adequado planejamento, podemos chegar mais rápido e com menos esforço aos nossos objetivos. Igualmente, o planejamento serve para antecipar e evitar problemas. Ou seja, ele evita que sejamos vítimas de dificuldades resolvíveis (sempre existem os problemas insolúveis, na qual não podemos fazer nada). Por fim, o planejamento serve para criarmos um modelo de trabalho, para que saibamos o que fazer em cada momento, evitando aquele enorme custo mental de ter que decidir o que fazer a toda hora. 

Existem muitas técnicas de planejamento disponíveis, sendo essa uma área própria de estudo (em geral em faculdades de administração). Não há nenhuma necessidade de adotar um modelo rígido, em que todas as etapas podem ser antevistas no início do processo. Ao contrário, a moderna ciência do planejamento já reconheceu há muitas décadas que estamos em um ambiente incerto, cheio de fatores importantes nas quais não temos controle. Esse modelo de planejamento muitas vezes é conhecido como “planejamento estratégico”. O planejamento estratégico costuma pensar que existem vários cenários possíveis, determinados pela ocorrência de fatores não controlados e inesperados. Neste caso, o planejamento estratégico prescreve que se deve criar um plano para cada cenário possível. Contudo, não vejo com bons olhos a ideia de se pensar em vários cenários, pois é quase impossível imaginar todos as situações que podem ocorrer no futuro. Ao invés disso, proponho a ideia de um planejamento resiliente, que permite se adaptar facilmente às diferentes situações inesperadas que podem acontecer ao longo da pesquisa. Chamo essa metodologia de “planejamento por etapas”.

A principal inspiração para essa nova metodologia de planejamento é a filosofia Kaizen, método de administração que surgiu nos Estados Unidos, mas se popularizou fortemente entre as empresas japonesas após a Segunda Guerra Mundial. Essa filosofia prega que ao invés de pensar em grandes transformações revolucionárias, se deve pensar em pequenas melhorias, feitas com grande constância. Ou seja, não se deve pensar em tudo que se tem que fazer à frente, mas apenas no próximo passo. Esse próximo passo pode ser algo bem pequeno, como escrever uma página, ler um texto ou buscar uma base de dados. Mas se esse passo for dado todos os dias, em pouco tempo a pesquisa estará realizada. Como disse o filosofo chinês Lao-Tsé “Uma longa viagem começa com um único passo”. Quase sempre, esse primeiro passo é o mais difícil de se dar. Depois de iniciado o caminho, tudo se torna mais fácil e natural.

            Particularmente, não gosto de pensar a pesquisa como uma grande obra, mas como a junção de pequenas partes. Esse pensamento evita ficar intimidado com a dificuldade do trabalho, evitando a procrastinação. Após conseguir finalizar uma pequena etapa de pesquisa, penso na etapa seguinte, que também pode ser um passo bem pequeno.

            Então, como seria esse planejamento por etapas? Em primeiro lugar, se estabelece as datas importantes da pesquisa. Em geral, a única coisa que sobrevive do planejamento “estilo gráfico Gantt” são os prazos finais, provavelmente por serem determinados por agentes externos, como a data do Congresso e o prazo final para a entregar do TCC ou da dissertação de mestrado. Assim, o prazo final para entregar a pesquisa é a primeira data importante a se considerar. Pode haver outras datas importantes, como a data para viagem de campo, ou eventos terminados que exigem preparação. Por exemplo, se você for fazer uma pesquisa que só pode ser realizada durante as eleições, a eleição é uma data importante. Igualmente é o caso de uma pesquisa que só pode ser realizada no inverno ou no verão, ou durante um festival popular.

Anotados os prazos importantes, se estabelece uma lista com tudo que precisa ser feito dentro dessas datas. Não me preocupo, inicialmente, em estabelecer o número de dias que cada tarefa demorará, nem a ordem em que elas devem ser executadas, apenas anoto o que precisa ser feito. Essas tarefas (ou “coisas”) que precisam ser feitas podem ser passos importantes da pesquisa ou as seções do trabalho final. Podemos pensar um exemplo desse tipo de lista na elaboração de um artigo científico:

  • Uma seção de revisão bibliográfica.
  • Uma seção com estatísticas descritivas.
  • Uma seção com entrevistas.
  • Uma seção com dados experimentais.

Fechada a lista de coisas que precisam ser feitas, eu decido a próxima tarefa a ser realizada. A decisão sobre a próxima tarefa deve levar em conta a conveniência e a etapa em que se encontra a pesquisa. Particularmente, eu gosto de fazer as tarefas mais simples primeiro, pois assim se evita a procrastinação.

Suponhamos que a primeira etapa a ser realizada seja a revisão bibliográfica. Então eu estabeleço um tempo curto para cumprir essa etapa, de acordo com o tempo que tenho disponível. Eu ignoro momentaneamente todas as etapas posteriores e me concentro apenas no que preciso fazer agora. Isso alivia a carga mental do planejamento, pois evita se preocupar com etapas futuras da pesquisa. Também é conveniente pegar a tarefa que se está fazendo agora e desmembrá-la em tarefas menores, como por exemplo:

Etapas da revisão bibliográfica:

  • Selecionar artigos de interesse na Scielo.
  • Selecionar artigos de interesse em revistas internacionais.
  • Fechar a lista de artigos a serem lidos.
  • Ler e fichar os artigos selecionados.

Não excluo a possibilidade de desmembrar ainda mais as tarefas em novas subtarefas. Por exemplo, você pode estabelecer um prazo para ler um único artigo. Quanto menores e mais simples os próximos passos a se dar, melhor será o planejamento. Em cada passo, se deve lembrar o mantra da filosofia kaizen: o importante é o próximo pequeno passo que eu vou dar. Você ignora, momentaneamente, o que vem depois e se concentrar no que deve ser feito hoje. Também é importante produzir um pequeno resultado em cada etapa. Por exemplo, ao ler um artigo, você deve escrever um pequeno resumo do que leu, mesmo que seja apenas um parágrafo. Você verá que esses pequenos resultados escritos vão se somando e pouco a pouco vão se transformar na sua pesquisa.

Ao final de cada tarefa, volte ao seu planejamento e veja se ele continua adequado. Não tenha medo de mudar a ordem das tarefas pré-estabelecidas, bem como acrescentar e excluir tarefas. Quando você escreveu as tarefas anteriormente, você não sabia das coisas que você sabe agora, você não tinha as informações que você tem hoje. Você é mais sábio agora. Então, as decisões de agora serão melhores que as de antes. A pesquisa é um processo de descoberta, então, você não tem nenhum compromisso com as decisões do passado. Apenas não deixe de ficar atento aos prazos importantes!

Podemos resumir esse modelo de planejamento, na seguinte rotina:

  1. Estabelecer as datas importantes.
  2. Criar uma lista de tarefas que precisam ser feitas dentro do projeto (sem data nem ordem de execução).
  3. Decidir qual será a próxima tarefa a ser feita.
  4. Estabelecer um prazo curto para finalizar a próxima tarefa.
  5. Planejar a próxima tarefa, estabelecendo:
    1. Uma lista de subtarefas a serem feitas.
    2. A próxima subtarefa a ser feita.
    3. Um prazo curto para a próxima subtarefa.
    4. Eventualmente, um planejamento para a próxima subtarefa
      1. Repetir o processo planejamento das sub sub-tarefas até que o próximo passo a ser dado seja tão óbvio que não precise de planejamento, apenas de ação.
  6. Após terminar cada tarefa ou subtarefa, produzir algum resultado escrito.
  7. Voltar até o passo 3 e pensar na próxima tarefa. Eventualmente você pode acrescentar ou excluir tarefas previamente pensadas. Repetir os passos 3 a 7 até sua pesquisa estar finalizada.

A ideia desse modelo de planejamento é aumentar a frequência dos resultados de pesquisa, ainda que seja diminuindo sua complexidade. Se o prazo para a próxima tarefa for maior que algumas semanas, recomendo quebrar o planejamento em tarefas menores e mais rápidas. A soma de pequenos passos tente a te levar mais longe e mais rápido que tentar produzir um resultado grande e complexo. Normalmente, começar a andar é mais difícil que andar mais rápido.

Conclusão

A solução proposta é apenas um esboço inicial. Ainda há muito o que desenvolver. Por exemplo, o que colocar no lugar dos gráficos Gantt nos projetos de pesquisa? A princípio, acredito que nessa seção cabe colocar apenas as datas importantes e a lista inicial de coisas a fazer. Também acho que existem componentes do planejamento que merecem maior atenção, como planejamento de recursos e habilidades (softwares a se aprender, por exemplo). Prometo escrever outro artigo desenvolvendo essa questão no futuro.

Contudo, o modelo de planejamento proposto acima espelha bem melhor a prática de pesquisa, onde as etapas nem sempre se sucedem em uma ordem lógica. É comum haver uma primeira revisão bibliográfica, depois análise de resultados preliminares (onde se encontra achados surpreendentes), que levam a nova revisão bibliográfica, seguido por nova coleta de dados, nova análise, eventualmente mais revisão bibliográfica etc etc. A cada passo temos que mudar o planejamento. Acaba que a decisão fundamental é sempre o que fazer em seguida. É óbvio que, em algum momento, a pesquisa precisa ter um fim. Em minha experiência, esse fim chega quando o prazo final chega, por isso é importante estabelecer ele desde o começo. Como diria Luís Fernando Veríssimo “minha musa inspiradora é o meu prazo de entrega.”.

Gostaria de saber o que você achou da minha proposta. Você consegue seguir o modelo de tradicional de pesquisa “estilo gráfico Gantt”? Acredita que esse novo modelo de planejamento pode ajudar? Desenvolveu por conta própria outro modelo de planejamento? Têm alguma crítica à proposta acima? Não tenha medo de comentar aqui embaixo sua opinião!

O Cientista em Busca de um Novo Lar

Preço dos imóveis sofre maior queda mensal da série histórica - Notícias ||  FormaNova - Interparts Gestão Imobiliária

            Ao contrário do que muitos falam, a pesquisa científica não está restrita a trabalhos científicos; ela também pode ser usada para resolver problemas cotidianos. Para demonstrar esse ponto irei utilizar a metodologia científica para resolver um problema pessoal que afeta quase todos em algum momento da fase adulta: encontrar um apartamento novo. Irei criar um projeto formal de pesquisa cujo objetivo é “encontrar o apartamento perfeito”, Também narrarei aqui os passos dessa busca, em uma espécie de diário público de pesquisa. A ideia desse experimento pessoal é, além de me divertir no processo, divulgar o conhecimento científico, tornando a metodologia de pesquisa mais próxima do cotidiano das pessoas. Esse estudo irá passar por todas as etapas de uma pesquisa científica acadêmica: formulação de questões, criação de hipóteses, definição metodologia etc. Veremos que essas etapas não precisam ser passos complicados, mas sim procedimentos simples, práticos e úteis. Dado que esse é um trabalho de divulgação científica, tentarei ser o mais didático possível em meus relatos, relacionando cada etapa da minha jornada rumo a um novo lar com questões teóricas de metodologia de pesquisa. Vocês verão como uma pesquisa pode ser interessante e divertida.

Questão de pesquisa

            Se a pesquisa tem uma “alma”, uma essência, essa alma são as questões de pesquisa. A questão determina praticamente tudo na pesquisa e questões diferentes levam a desenhos de pesquisa diferentes. A questão determina o referencial teórico, a revisão bibliográfica, a metodologia, enfim, tudo! Toda pesquisa “gira” em torno de suas questões. Inclusive, no meu curso de metodologia científica, eu defino “pesquisa” como “a atividade de ativa a conscientemente buscar responder questões previamente formuladas”. Assim, sem questão bem definidas, não existe pesquisa.

No meu curso de desenho de pesquisa em ciência política, eu coloco quais são as características de uma boa questão de pesquisa:

  • A questão deve ser específica (ou seja, não ser vaga ou pouco clara).
  • A questão deve estar conectada à literatura da área.
  • A questão deve levar a um projeto de pesquisa factível.

O segundo ponto é fundamental para pesquisa científicas, mas irei dar pouca atenção a ele aqui. Afinal, nosso objetivo não é produzir teorias novas sobre buscas de imóveis para alugar, mas apenas resolver o meu problema particular. Por outro lado, o primeiro e o terceiro ponto continuam fundamentais. Então vamos à definição mais importante do projeto: a questão de pesquisa.

Este projeto de pesquisa irá responder a seguinte questão: qual apartamento disponível para alugar em Belém é o melhor para abrigar Murilo Junqueira nos próximos anos?

            Ou seja, quero, na infinidade de imóveis para alugar em Belém, achar o que melhor serve a mim.

Justificativa

            Muitas vezes regras institucionais, criadas pelas universidades ou instituições de financiamento a pesquisa, exigem que os projetos tenham uma “justificativa”. Eu, como a maioria das pessoas, tenho a vontade de escrever que a justificativa do projeto é simplesmente “eu quero estudar isso”. Porém, essa não é uma boa justificativa. Para entender isso, precisamos voltar ao ponto básico: entender o que é uma justificativa de pesquisa. Basicamente, a justificativa é um argumento dizendo que sua pesquisa é importante e que por isso precisa receber financiamento e apoio institucional. Escrever uma justificativa totalmente pessoal como “eu quero estudar isso” não vai convencer as pessoas a te apoiarem. Afinal, o que eles têm com seus problemas e interesses pessoais? É preciso uma justificativa pública para sua pesquisa.

            Bem, essa pesquisa é uma pesquisa aplicada, que visa, basicamente, prover maior bem-estar para Murilo Junqueira (eu mesmo), portanto, ela tem um caráter privado. Mas, como além desse interesse individual, ela também visa ser uma aula de metodologia científica, segue uma justificativa mais aceitável:

            Muitas vezes as pessoas veem a metodologia científica ou como um mero detalhe ou uma formalidade em trabalhos científicos. Um adorno aos projetos de pesquisa. Outras vezes, a metodologia é vista como algo impressionante, misterioso e arcano. Palavras chiques, mas desprovidas de conteúdo (ex: metodologia fenomenológica-histórico-dialética-hermenêutica) são usadas, mas raramente tem algum impacto na pesquisa. Na minha visão, metodologia científica não é nem um adorno nem precisa ser algo excessivamente complicado. Ao contrário, ela existe para simplesmente conseguirmos informação confiável de forma sistemática. Portanto, irei utilizar um desafio pessoal, que afeta muitas pessoas em algum momento da vida adulta, para explicar como a metodologia de pesquisa pode ser útil. Isso irá ajudar a aproximar a ciência, em particular a metodologia científica, do cotidiano das pessoas. Assim, este estudo poderá ajudar quem têm interesse em ciência e em metodologia de pesquisa, ou então estudantes de graduação e pós-graduação que ainda estão lutando para entender os conceitos de metodologia, bem como, eventualmente, dar algumas ideias para quem também esteja procurando casa ou apartamento para alugar. Além disso, vejo que as pessoas gostam de acompanhar a vida dos outros – por isso que novelas e reality shows fazem tanto sucesso. Assim, no mínimo, creio que ler esse diário de pesquisa será divertido.

Características de um apartamento ideal

            A questão de pesquisa fala sobre encontrar “o melhor” apartamento. Mas o que seria esse “melhor”? Vemos aqui que a questão de pesquisa principal nos obriga a nos debruçar sobre uma outra questão subsidiária: definir o que eu considero como o melhor apartamento. Essa é uma situação frequente em pesquisa: uma questão principal acaba chamando questões derivadas ou “questões-filhas”. Aliás, eu costumo sempre quebrar questões grandes e difíceis em questões menores e mais fáceis de lidar. Isso me ajuda a evitar o sentimento de paralisia ou a tendência à procrastinação que afeta muitos pesquisadores. Eu não vejo um projeto de pesquisa como uma coisa só, mas como a junção de “mini-pesquisas” que vão se somando. Veremos essas mini-pesquisas com frequência nesse diário. Mas, vamos voltar à definição do apartamento ideal.

            A pergunta “qual meu apartamento ideal?” é uma pergunta normativa; ou seja, fala sobre o “dever ser” e não sobre “o que é”. Essa é uma pergunta muito pessoal. Ela está relacionada aos meus gostos e valores; que podem não ser coincidentes com os seus; além de tratar da situação específica em que eu vivo (minha cidade, minha renda etc). Assim, a pergunta principal “qual apartamento disponível para alugar em Belém é o melhor para abrigar Murilo Junqueira nos próximos anos?” envolve tanto um lado objetivo (os apartamentos disponíveis), quanto um lado normativo e subjetivo (meus gostos, valores e situação pessoal). A pesquisa, então, apresenta um caráter que chamo em meus textos de “análise técnica”, que defino como “o estudo positivo [empírico] com vistas a implementar princípios normativos”. Ou seja, farei um estudo objetivo do mercado imobiliário de Belém para implementar um “ideal”, que no caso é encontrar minha moradia dos sonhos. Porém, não saberei o que procurar (ou onde procurar; ou até mesmo se já encontrei) o lugar ideal se não tiver muito claro em minha mente qual é esse “ideal”. É como o diálogo de Alice e do gato no livro “Alice no País das Maravilhas”, de Lewis Carrol:

“Alice perguntou: Gato Que Ri… pode me dizer qual o caminho que eu devo tomar?

Isso depende em grande medida do lugar para onde você quer ir – disse o Gato.

Eu não sei para onde ir! – disse Alice.

Se você não sabe para onde ir, todos os caminhos são igualmente bons.”

          

The Cat Only Grinned Alice in Wonderland Giclee by Jim Salvati

  Ou, como disse minha amiga Olívia Perez, uma ótima procuradora de imóveis, a melhor forma de economizar tempo na busca de moradia é ter muito claro o que se quer. Então, vou fazer aqui uma descrição de como seria minha moradia dos sonhos:

            Meu apartamento ideal é, em primeiro lugar, um apartamento. Como viajo com uma certa frequência, prefiro apartamentos a casas, por questões de segurança. Quero um condomínio com portaria 24 horas para poder viajar por longos períodos sem me preocupar se minha casa está sendo pilhada. Também quero um imóvel bem localizado. Não precisa ser no bairro mais chique da cidade, mas que seja razoavelmente seguro e tenha uma infraestrutura que me permita ir a pé para muitas das minhas atividades. Em especial, que tenha uma academia de Crossfit perto, no máximo 15 minutos de bicicleta, pois esse é o exercício que mais faço. Atualmente moro em um lugar que tem uma aparência muito soturna a noite e vejo que algumas pessoas se sentem desconfortáveis em me visitar depois que o sol se põe. Quero um lugar que evite essa situação, ou seja, que tenha um aspecto agradável, mesmo à noite. O lugar deve estar a uma distância que posso ir ao meu trabalho dentro de um limite razoável de tempo, algo como 25 minutos de carro. O apartamento não precisa ser grande, mas não quero nada excessivamente pequeno. O tamanho deve ser suficiente para poder receber amigos em casa sem que as pessoas precisem ficar empilhadas uma em cima da outra. Vou procurar opções de dois e três dormitórios, pois poderei deixar um dormitório como meu quarto e outro como escritório; podendo haver um terceiro cômodo para receber parentes e amigos. Em especial gostaria de uma vista agradável, em que eu pudesse relaxar olhando para ela. Com relação ao preço, busco algo que seja entre 18% e 25% da minha renda líquida.

            É muita coisa, não é? Quando falo para colegas sobre esse ideal, quase todos são unanimes em falar que estou sendo ambicioso demais para uma cidade como Belém. Porém, eles não sabem que tenho uma arma secreta: a metodologia científica! Ela vai me ajudar a encontrar minha Shangri-Lá.

Metodologia de Pesquisa.

            Pois bem, como essa busca científica de imóveis será executada? (outra questão-filha). A resposta para essa pergunta definirá a metodologia desta pesquisa. Ao contrário do que muitos pensam, a metodologia não passa de uma descrição de como a pesquisa será realizada. Mais do que enunciar um título pomposo, por exemplo, “pesquisa quantitativa”, “pesquisa qualitativa”, pesquisa “hermenêutico-dialética” (seja lá o que signifique isso), é muito mais útil falar o “passo a passo” da pesquisa.

Irei implementar nessa pesquisa a estratégia que propus no meu texto sobre a integração de metodologias quantitativas e qualitativas. Essa proposta passa por quatro fases:

  • Fase 01: reconhecimento qualitativo de mercado. A primeira fase é qualitativa e exploratória. Nessa fase vou visitar algumas imobiliárias e alguns imóveis, para saber como anda o mercado. O objetivo aqui é mais conversar com os corretores que encontrar barganhas. Na verdade, essa fase será uma espécie de entrevista informal e “observação participante” junto aos profissionais de mercado e, eventualmente, aos apartamentos. É impressionante o que você pode aprender conversando com as pessoas que entendem do assunto. Essa fase de reconhecimento irá me dar os “fatos básicos” do mercado e ajudará a organizar as fases seguintes. Pretendo criar um diário de campo e também narrar minhas visitas aqui.

  • Fase 02: reconhecimento quantitativo de mercado. Aqui pretendo varrer os principais sites de imóveis colhendo os apartamentos de meu interesse e inserindo eles em um banco de dados. A análise será quantitativa e exploratória. Continuarei visitando os apartamentos, mas procurando sempre registrar todas as informações de forma sistemática. Meus orientandos sabem como dou valou para uma boa estruturação de dados, então, pretendo criar um banco de dados exemplar para organizar essas informações, inclusive usando informações georreferenciadas. A ideia é criar um mapa das zonas mais e menos valorizadas da cidade, bem como o preço médio por bairro, rua ou mesmo prédio. Em geral, o preço reflete o benefício que um imóvel tem. Uma barganha é quando um bem tem um preço inferior a outros similares. Meu objetivo é justamente encontrar essas barganhas.

  • Fase 03: análise automatizada. Com base da experiência adquirida nas fases anteriores, irei criar um sistema automatizado, utilizando a linguagem R, que vai buscar automaticamente os imóveis ofertados nos principais sites. Afinal, preciso utilizar para alguma coisa todos os cursos de metodologia quantitativa, programação e ciência de dados que eu fiz! Irei criar relatórios de análise com base nos dados coletados e desenvolver a análise iniciada na fase anterior. Pouco a pouco espero formar um mapa detalhado do mercado imobiliário de Belém, pelo menos naqueles imóveis que estão dentro do meu padrão. Em especial, quero criar um sistema que detecte automaticamente barganhas.

  •  Fase 04: a escolha. De posse das informações colhidas na fase anteriores pretendo visitar e conferir as oportunidades encontradas pelo sistema da fase 03. Caso necessário, informações colhidas nos sites serão corrigidas e complementadas com informações de campo (ou seja, visitas de imóveis). Também pretendo criar um sistema de ofertas para os proprietários, tentando diminuir os preços pedidos através da negociação. Ao final, baterei o martelo decidindo o apartamento escolhido.

Realmente, não acho que é necessária toda essa parafernalha para uma pessoa qualquer encontrar um bom imóvel. Existe muitas pessoas que conseguem encontrar ótimas barganhas com estratégias bem menos sistemáticas. Mas, como esse é um exercício didático e um experimento pessoal, quero ver a vantagem que vou ter frente aos procuradores “normais” de imóveis em usar essas táticas.

Revisão bibliográfica

            Nenhuma pesquisa estará completa sem uma revisão bibliográfica, certo? Aqui não será exceção. Pretendo procurar no google alguns sites e blogs que dão dicas sobre como procurar imóveis com eficiência. Igualmente, pretendo buscar artigos de analistas que fizeram pesquisas automatizadas nos mercados imobiliários; ideia que já ocorreu anteriormente para alguns cientistas de dados (em uma pesquisa rápida encontrai relatos aqui, aqui e aqui). O interessante é que muitos desses artigos já fornecem os códigos de programação utilizados, o que certamente será aproveitado em meu trabalho. Pretendo mostrar uma revisão bibliográfica mais detalhada aqui mesmo no futuro.

Por enquanto é isso! Já temos um esboço inicial de pesquisa. Agora, vamos começar essa jornada no deserto rumo à minha Terra Prometida, montado no dorso dos camelos da ciência! Aguardem os próximos capítulos! 😉

Curso “Como as Leis são Feitas”

Caros, abaixo está todo o material do curso “Como são feitas as Leis: processo legislativo e organização do Poder Legislativo”. Esse material vai ficar nesse blog por tempo limitado. Então, aproveitem!

Aulas:

Aula 01: Aula Quiz

Aula 02: AulaQuiz

Aula 03: AulaQuiz

Aula 04: AulaQuiz

Slides do Curso:

O Poder Legislativo Brasileiro (curso Completo)

01 – Conceitos Fundamentais

02 – Organização dos poderes

03 – Sistema eleitoral Brasileiro

04 – Atribuições do Congresso Nacional

05 – Mesa Diretora e Comissões

06 – CPIs

07 – Reuniões

08 – Estatuto dos congressistas

09 – Tipos de atos normativos

10 – Processo Legislativo

11 – Plebiscitos e Referendos

12 – Emendas Constitucionais

13 – Julgamento do Presidente da República

Mapas Mentais:

Siglas

Princípios fundamentais

Organização do legislativo

Direito Parlamentar

Processo legislativo

Técnica Legislativa

Julgamento do Presidente da República

Vos apresento, o maior inimigo da ciência!

A ciência tem um inimigo número 1. Não estou me referindo aos ideólogos anticientíficos ou pseucientíficos que estão em moda hoje em dia. Esse inimigo é muito maior e mais ancestral. Inclusive, ele ilumina o caminho dos propagandistas contra a ciência de hoje, assim como o fez com os obscurantistas do passado. Ele é um monstro terrível e imaterial que se esconde em todos os lugares, inclusive dentro de nós mesmo. Esse inimigo é tão terrível que não pode ser derrotado, apenas pode ser contido – e mesmo assim temporariamente. Ao menor descuido, ele se liberta e domina a nossa mente. Você pode ser o cientista mais sério, mais rigoroso do mundo, que basta um descuido para ele sair das sombras e te dominar completamente.

Infelizmente, a língua portuguesa não tem uma palavra para nomear esse inimigo, por isso teremos que recorrer à língua inglesa (e ainda sim usando duas palavras!). O melhor termo para nomear esse inimigo é wishful thinking. A expressão fica esquisita em português, cuja tradução literal é “pensamento desejoso”, razão pelo qual preferimos utilizar o termo em inglês. Wishful thinking se refere à prática de confundir a realidade com aquilo que gostaríamos que fosse a realidade. Sabe aquilo que você queria tanto que fosse verdade que você “enxerga” que existe, mesmo quando não está realmente lá. O caminhante sedento no deserto costuma ter miragens com fontes de água. O fã jura que seu ídolo olhou diretamente para ele no meio da multidão. Quando o atacante cai na grande área, sua torcida jura que foi pênalti, enquanto a torcida rival jura que não foi nada (o juiz sempre será xingado), e assim vai…

O wishful thinking é universal e acompanha a humanidade desde sempre. É parte da mecânica de funcionamento da nossa mente. É por isso que os crentes de todas as religiões veem Deus (ou os Deuses) em todos os lugares. Por isso que os partidários veem a cada passo como seus inimigos são terríveis e como seus companheiros são bons. O “pensamento desejoso” nem sempre é sobre algo positivo. O derrotista vê em todos os fatos da sua vida, até mesmo em suas vitórias, a prova de seu fracasso. O ególatra vê até em suas bobagens a prova de que é incrível (um abraço para Donald Trump, by the way…).

Por que o wishful thinking é tão terrível para a ciência? Basicamente, porque a ciência consiste justamente na tentativa de ver as coisas como ela são e não como gostaríamos que elas fossem. Em outras palavras, não podemos confundir nossos juízos normativo, ou nossos preconceitos cognitivos, com o mundo tal como é. Os cientistas, como humanos, também possuem tendências ao wishful thinking. Em particular, os cientistas, quando desenvolvem uma hipótese ou abraçam uma escola de pensamento, resistem a mudar ideia, se apegando a suas pressuposições iniciais. Mudar um padrão de pensamento estabelecido é muito custoso, em termos cognitivos. Nesse sentido, nosso cérebro é um pouco preguiçoso. Evidências contra as ideias originais são ignoradas, supostas confirmações são superestimadas; fazendo os cientistas prisioneiros de suas ideias.

Mas a ciências é justamente uma disciplina para que, de forma sistemática e coletiva, evitemos o wishful thinking. A metodologia científica, basicamente, consiste em instruções, protocolos, técnicas e regulações para evitar o wishful thinking. Mas nada disso adianta se o cientista (e a ciência, enquanto empreendimento coletivo) não manter a autoconsciência e a autodisciplina. É preciso compreender que sua mente tentará o tempo todo te enganar, fazendo você acreditar no que não está lá, só porque é uma visão de mundo mais prazerosa ou mais cômoda. Se a autoconsciência e a autodisciplina fraquejam, o monstro ataca!

Como as eleições americanas impactam o Brasil

Headshots of Joe Biden and Donald Trump facing each other

A menos que um meteoro atinja a terra (ou fato de relevância política equivalente), Joe Biden será o próximo presidente dos Estados Unidos. Os sites de previsão eleitoral, como o fivethirtyeight.com, dão ao democrata 88% de chances de ganhar as próximas eleições. Ou seja, ele já está com uma mão na taça, ou melhor, na faixa! Quais as consequências desse fato para o Brasil? Podemos citar pelo menos três pontos.

                O primeiro deles é uma certa quebra de expectativas dos eleitores de Bolsonaro. As relações internacionais nunca foram um tema próximo ao radar dos eleitores brasileiros, mas isso está mudando rapidamente, devido à emergência da globalização e da comunicação instantânea. Os apoiadores de Bolsonaro são claramente americanófilos e enxergam Donald Trump como um líder, tanto quanto enxergam o capitão. Como não lembrar a recente reportagem de Mariana Sanches, para a BBC Brasil, que mostra que até alguns imigrantes ilegais brasileiros apoiam Trump. Chegaram até mesmo a fazer um outdoor eleitoral em apoio a Trump em Governador Valaredes (MG), meca da emigração para os EUA. Certamente a derrocada de seu líder será para essas pessoas uma grande decepção. Afinal, a “nação modelo” terá elegido um governante com um discurso distinto de seus ideais, o que certamente reduzirá a autoconfiança dos bolsonaristas.

                A segunda consequência da eleição de Biden será uma “possível” mudança na política externa brasileira, caracterizada atualmente por um alinhamento automático a Donald “I love you” Trump (mais que aos EUA). Com um democrata na Casa Branca, o Brasil estará praticamente sem aliados internacionais, uma vez que terá más relações com seus dois principais parceiros comerciais (China e EUA) e também terá virado as costas para a América Latina e Europa. Porém, eu digo que essa mudança na política externa brasileira é apenas “possível” e não confirmada. A atualmente o Itamaraty está fortemente ideológico. Quem age por convicção sempre resiste a mudar de postura, mesmo quando as condições objetivas se alteram. Por outro lado, a política externa dos EUA para o Brasil provavelmente vai mudar pouco. A guerra comercial com a China é uma pauta suprapartidária nos Estados Unidos e Biden e os democratas prometeram mantê-la. O mesmo se dá com a política de protecionismo comercial de Trump, como no caso do 5G, que também seguirá forte. Hoje, o Brasil não é uma prioridade da política externa dos EUA, e muito provavelmente continuará assim com os democratas. Talvez a única exceção seja a questão do meio ambiente. Joe Biden citou a Amazônia duas vezes durante os debates da TV, sendo uma das poucas pautas externas comentadas. Porém, isso não representa uma grande novidade na (já muito desgastada) imagem internacional do Brasil. O que aconteceria seria apenas que os EUA se juntariam aos Europeus na oposição às políticas locais de devastação ambiental.

Por fim, as eleições americanas têm um gosto de efeito Orloff: aquela propaganda antiga onde se dizia “eu sou você amanhã!”. A eleição de Trump adiantou em muitos aspectos a eleição de Bolsonaro no Brasil. Certamente, o resultado da eleição americana dará uma visão mais clara de o que acontecerá nas eleições brasileiras de 2022. Existem evidências de que a manipulação da opinião públicas através das redes sociais está atingindo um certo esgotamento. Nos últimos anos, se iniciou, tanto nos EUA quanto no Brasil, a repressão judicial às chamadas “fakenews”, bem como mudanças nas leis e um melhor preparo do público e da oposição para lidar com esse fenômeno. Também podemos citar o fim do feito “outsider”. Muitos votaram em Trump e Bolsonaro esperando uma grande novidade política. A frustração dessa expectativa pode jogar o eleitorado de volta aos partidos tradicionais. Por fim, a eleições americanas mostrarão qual o destino do neopopulismo turbinado pelas redes sociais: (1) ele será uma onda irresistível, (2) uma onda passageira ou (3) um problema que veio para ficar, mas que temos que aprender a conviver com ele, pois ele não pode ser eliminado, apenas controlado – igual ao Covid-19.

Como acabar com a corrupção no Brasil!

(ou pelo menos reduzi-la severamente)

A Corrupção como grande problema nacional.

Se você perguntar a um brasileiro médio qual o principal problema do Brasil, existe uma boa chance de ele dizer que é a “corrupção”. A população está sendo bombardeada pela mídia com escândalos sobre a classe política há praticamente 30 anos. Em minha visão, esse pânico com a corrupção é francamente exagerado. Existe uma série de problemas que são tão graves ou piores que a corrupção. Por exemplo, em meu mestrado eu estudei o sistema tributário, que é provavelmente o principal motivo isolado da economia brasileira estar andando de lado há quase 40 anos. Digo o principal problema “isolado” porque existem muitos fatores que contribuem para esse fato, mas se contarmos o peso de cada fator individual, nenhum é tão pesado quanto o sistema tributário. E, nesse caso, as leis não estão sendo burladas: elas são, em si, catastróficas. Como funcionário público, também pude presenciar como o Estado é mal gerido, mesmo quando todas as leis estão sendo respeitadas. A burrice gerencial muitas vezes traz consequências tão graves ou piores que a corrupção.

Porém, nenhum desses fatores atrai tanta atenção quando a corrupção. A explicação para a obsessão brasileira com a corrupção é que ela vende: ela vende jornal, vende revista, traz audiência para TVs e rádios, gera cliques nas redes sociais etc. Isso ocorre porque as notícias sobre a corrupção se baseiam em uma explicação simples sobre o mundo: existem pessoas más (os corruptos) e pessoas boas (o policial, o promotor, o juiz, o repórter). Discutir gestão pública ou sistema tributário é chato e complicado; mas a corrupção é simples e apelativa. As pessoas parecem sentir um prazer em se sentirem superiores aos políticos “bandidos”. Eles servem como o bode expiatório de todos os problemas complicados que a sociedade se recusa a ver.

Mas, vamos lá! Vamos discutir a corrupção! Mesmo acreditando que o foco na corrupção é um tanto quanto exagerado, temos que nos dedicar a enfrentar esse problema. Digo isso por dois motivos. Em primeiro lugar, o hiperfoco na corrupção simplesmente trava todos os demais debates. Podemos perceber que quando eclode um grande escândalo, o Congresso Nacional paralisa todas as discussões até que a opinião pública “digerir” o ocorrido; o que pode levar semanas, meses ou até anos (como foi o caso do mensalão e do “petrolão”). Após cada escândalo, a confiança da população na classe política cai, bem como cai a disposição de discutir seriamente os demais problemas. Uma discussão política séria exige um certo nível de credibilidade e confiança nos representantes. A eleição de Jair Bolsonaro claramente foi uma resposta da população a essa falta de confiança pública. Muitos acreditaram que o capitão iria expulsar os políticos tradicionais e acabar com a corrupção na marra. Para aqueles que acham que a corrupção é o único problema nacional de fato, isso seria o suficiente para transformar o país em um paraíso. Como sabemos, nem Bolsonaro acabou com os políticos tradicionais, nem a corrupção acabou; tampouco estamos vivendo no Jardim do Éden.

O segundo motivo é que a corrupção frequentemente atrapalha objetivamente o surgimento de soluções tecnicamente adequadas em uma série de políticas públicas. Uma vez, conversando com um colega professor estudioso da corrupção, mencionei minhas críticas ao hiperfoco na corrupção, tal como escrevi acima. Esse professor, que também dava aulas em uma universidade pública, falou que também presenciava muito mais problemas administrativos que corrupção no setor público, mas em sua opinião uma coisa estava ligada a outra. Segundo ele, adotar boas práticas administrativas muitas vezes é muito ruim para os políticos corruptos. Podemos pensar no exemplo de um governante que instala um excelente sistema de monitoramento eletrônico dos processos administrativos dentro do Estado, algo que é comum nas grandes empresas privadas. Porém, um bom sistema de monitoramento é algo muito perigoso para os núcleos de corrupção dentro da máquina pública. Então, manter um sistema de administração defasado e tosco pode ser muito mais uma decisão deliberada dos políticos que uma questão de incompetência.

A reforma política é a solução?

Muitos analistas buscam uma solução institucional para a corrupção. Alguns defendem que a reforma política deveria servir a esse propósito. Porém, essa é uma má ideia, por vários motivos. Em primeiro lugar, não há um modelo político que seja imune à corrupção. Pior ainda, não encontramos nem sequer uma correlação estatisticamente significativa entre modelos políticos e corrupção. Ao que tudo indica, é possível roubar (e também ser honesto) tanto no parlamentarismo quanto no presidencialismo; tanto com voto distrital, quanto com voto proporcional (e assim vai…). Simplesmente parece que o problema não está aí! O segundo problema da reforma política como remédio para a corrupção é que ela altera mais fatores além da corrupção (se é que ela altera a corrupção…). Por exemplo, adotar o voto distrital puro no Brasil, no modelo inglês ou norte-americano, iria transformar o país em bipartidário, ou seja, com apenas dois partidos relevantes. Isso afetaria a representatividade das minorias no sistema político. Em terceiro lugar, esse tipo de proposta é muito difícil de ser aprovada. Reformas políticas profundas em qualquer país são extremamente raras. Esse tipo de reforma afeta os interesses dos políticos, afinal, eles foram eleitos pelo sistema vigente. Pelo lado da população, raramente alterações no sistema político parecem ter algum benefício claro. Apesar de críticas ao sistema político serem frequentes, dificilmente uma proposta de alteração específica consegue apoio popular. Tente você mesmo iniciar uma discussão com seus amigos sobre qual deveria ser o sistema político brasileiro e verá como é difícil as pessoas concordarem com algum ponto.

Assim, a reforma política é um remédio errado para o problema da corrupção. Acredito que o sistema brasileiro deveria ser alterado, mas não exatamente para resolver esse ponto. Dedicarei outro post sobre esse assunto no futuro.

Tem que haver mais punição?

Certamente, se todos os políticos fossem punidos logo após cometerem um delito, em pouco tempo não teríamos mais corrupção. Porém, a experiência recente da Lava Jato mostrou que essa estratégia é também problemática. Em primeiro lugar, a corrupção, principalmente aquela de alto nível, é bem difícil de ser descoberta. No caso da Lava Jato, vimos que os processos são longos e difíceis. Muitas vezes os investigadores e promotores tiveram que fazer gambiarras jurídicas para manter o processo de pé, como interpretações “heterodoxas” das leis, que só foram adiante porque, durante um certo tempo, o Poder Judiciário foi extremamente conivente com a operação (um beijo para Sérgio Moro e a turma do TRF4!). Por outro lado, as operações anticorrupção que seguem estritamente a lei costumam ter muita dificuldade em produzir resultados. Isso ocorre por problemas na legislação, é verdade, mas também porque o crime de corrupção é naturalmente difícil de ser combatido. Ele mexe com gente poderosa, com muito dinheiro e qualificada o suficiente para saber como fugir da lei.

Um segundo motivo para sermos céticos com a solução punitivista é que ela colabora com o descrédito da política, tal como falado acima. Muitos ligam a Lava Jato à eleição de Bolsonaro, da mesma forma que na Itália a operação Mãos Limpas acabou com a reputação dos partidos tradicionais e provocou a ascensão de um populista, como Silvio Berlusconi. Claramente vemos que esse é um caminho muito ineficiente para acabar com a corrupção. Por um lado, atacar a corrupção “no varejo”, desbaratando um esquema por vez, leva muito tempo; além de gerar altos custos e traumas políticos. Por outro lado, a cada escândalo revelado, a população diminui sua confiança na classe política. Indo assim, no final do processo, é mais provável que tenhamos um golpe de Estado ou mudanças na lei para blindar a classe política que o fim da corrupção.

É preciso uma proposta que acabe com a corrupção no atacado, de uma vez. Igualmente, é preciso uma medida que impeça a corrupção de ocorrer e não que puna o corrupto após o mal feito ter acontecido. O raciocínio é o mesmo de quando pensamos na criminalidade comum. Eu não quero viver em uma sociedade em que a polícia prende muitos criminosos. Eu quero viver em uma sociedade em que não existam crimes e a polícia não tenha o que fazer! A punição aos casos de corrupção é uma solução complementar ao problema, não uma solução principal. Ela funciona melhor quando a corrupção é pontual, não quando ela é sistêmica, como é o caso atual.

Vamos agora à proposta que será um tiro no peito da corrupção!

Enfim, a proposta!

Se alterar as regras do sistema político, entendidas como as regras eleitorais e as relações Executivo-Legislativo, não é adequado para atacar o problema; igualmente a estratégia punitivista não dá bons resultados sozinha, qual seria então a boa solução? A resposta é atacar o problema diretamente, amarrando as mãos dos políticos, ou seja, fechando as oportunidades para a corrupção ocorrer. Observando os escândalos de corrupção expostos pela mídia, vemos um fator comum entre eles: quase todos estão ligados a compras e contratos públicos. Eles são sempre desvios de verbas na compra de merendas, na compra de ambulâncias, na construção de obras públicas, coleta de lixo etc. Assim, as compras e contratações públicas parecem ser o grande ralo por onde os ratos entram no serviço público. Temos que tampar esse buraco!

A proposta que faço, então, é criar um órgão independente dos políticos que realize todas as compras e contratações públicas. Esse órgão seria composto exclusivamente por funcionários de carreira (concursados) e não teria nenhuma ingerência de políticos eleitos. Esse órgão seria formalmente ligado ao Poder Executivo (afinal, trata-se de uma função administrativa), mas seria tão autônomo na prática quanto um Poder independente. Seria uma espécie de “Poder Comprador”. Para se ter uma referência próxima, podemos citar o Ministério Público, que antes era ligado ao Executivo e se tornou independente a partir de 1988. Os funcionários do órgão comprador teriam estabilidade no cargo e um bom salário, de modo a atrair profissionais qualificados. Toda a gestão interna, incluindo as regras de gestão de carreira, teriam que ser decididas internamente, entre os pares. Os políticos teriam ingerência mínima sobre esse órgão. Funcionários comissionados “de confiança” do governante de plantão não seriam aceitos ali.

Operacionalização da proposta

Esse órgão seria o responsável por elaborar os editais e gerir o processo de compra de todos os poderes: o Executivo, o Legislativo, o Judiciário e o Ministério Público. Para evitar a excessiva centralização e respeitar o sistema federativo, haveria um órgão comprador para a União e mais um por Estado. Os municípios realizariam compras pelo órgão comprador de seu Estado. Esse último ponto também resolve um problema administrativo importante: os pequenos municípios raramente conseguem fazer compras de forma eficiente, devido à falta de escala. Havendo um órgão único que comprasse para todo o Estado, esse problema seria resolvido. Diga-se de passagem, a proposta também resolve outro problema administrativo: a profissionalização da área de compras e contratações. Eu já trabalhei nessa área quando fui gestor público no governo do Estado de São Paulo. Pude perceber que muitas vezes os encarregados das compras públicas eram funcionários mal pagos, mal treinados e pouco motivados. O diálogo descrito acima, com o professor que me falou da relação entre má gestão e corrupção, nunca saiu de minha cabeça enquanto trabalhei no setor. Não existe uma carreira específica de comprador. Quem atua nessa área normalmente foi contratado como técnico administrativo e, na maioria das vezes, exerce essa função apenas por um período em suas carreiras. Como o setor exige muito conhecimento técnico, não gera grandes ganhos salariais e envolve um considerável risco jurídico, vejo que os funcionários pulam para fora da área na primeira oportunidade. Criar um órgão comprador autônomo e uma carreira específica de compras resolve esse problema.

A dinâmica das compras seria então a seguinte. Caberia aos gestores políticos (presidente da república, ministros, secretários, presidentes de autarquias, presidentes de tribunais, mesa diretora de órgãos legislativos etc) a decisão de o que comprar, quando comprar e quanto gastar. Esses gestores enviariam ao órgão comprador uma requisição de compra com uma descrição genérica do bem ou serviço desejado. Por exemplo, se o prefeito deseja construir uma ponte sobre um rio, ele deve enviar uma requisição dizendo a descrição da ponte, sua localização, o padrão de qualidade requerido, quantas pistas deve ter, o orçamento disponível etc. Se o prefeito deseja comprar carteiras escolares, a requisição deve conter a quantidade de carteiras, a qualidade exigida, o tipo de uso (para que as cadeiras tenham o tamanho correto para os pequenos) etc. A partir da requisição, o órgão comprador elabora o edital e gere toda a compra. Todos os procedimentos administrativos ficam em seu encargo até a entrega do produto ou serviço ao órgão requerente. Em todos esses casos, a compra é realizada com a verba do órgão requerente (prefeitura, ministério, tribunal, etc); cabendo ao órgão de compras apenas a gestão do processo. O órgão requerente elabora apenas a descrição genérica e os tipos de uso do bem ou serviço. A especificação detalhada, ou seja, os detalhes técnicos do produto que devem constar no edital, são de responsabilidade do órgão comprador. Isso deve ocorrer porque a especificação é a principal ferramenta que gestores mal intencionados usam para direcionar a compra para determinadas empresas. Nessa proposta, todos as decisões políticas da compra (o que comprar, quando comprar, quanto dinheiro gastar) cabem aos gestores políticos, mas as decisões técnicas da compra são absorvidas por esse órgão comprador independente.

            Obviamente a descrição acima é apenas uma primeira ideia inicial. Muitos detalhes devem ser elaborados para que a ideia vire realidade. Por exemplo, não faz sentido fazer um edital de compras para cada município que requere carteiras escolares (ou computadores, ou papel higiênico, ou qualquer outra coisa). O mais inteligente seria fazer uma grande compra que atendesse a todos os municípios do estado, segundo um planejamento anual de compras. Aliás, essa já é a boa prática recomendada pelos especialistas em compras públicas, mas que poucas vezes é implementada na prática. Para que essa ideia funcionasse, teria que haver toda uma nova engenharia institucional nas leis administrativas e orçamentárias. Porém, a ideia básica é o exposto acima.

Mas o órgão comprador não pode se tornar ele mesmo corrupto?

            Muitos poderiam argumentar que criar uma burocracia de compras iria apenas mudar a corrupção de mãos. Ao invés dos políticos eleitos roubarem, são os funcionários do órgão comprador que iria ficar com a grana. Porém, esse tipo de argumento não se sustenta quando pensamos nele com calma. As oportunidades que um político poderoso tem para praticar a corrupção são muito maiores que as de um funcionário concursado. Os políticos indicam os membros dos tribunais superiores e do Ministério Público. Eles decidem o orçamento, tem ligações com a imprensa, ascensão sobre a polícia e boas conexões com o empresariado. Um funcionário concurseiro dificilmente tem acesso a esses recursos de poder. O principal recurso do funcionário público é seu cargo, que ele dificilmente vai arriscar perder por alguns trocados a mais. Ele sabe que se estourar um escândalo em seu órgão, será ele, e não o político poderoso, que será punido. Afinal, a corda tende a estourar do lado mais fraco.

            Outro ponto a se considerar é que o órgão comprador será fiscalizado pelos demais poderes. A lei de criação do órgão comprador deve prescrever que ele deve se pautar pela mais absoluta transparência. Os Poderes Executivo, Legislativo, Judiciário e Ministério Público poderão conferir todos os procedimentos de compra e pedir correções, quando a lei permitir. Os próprios funcionários do órgão comprador seriam obrigados a abrir mão previamente, em caráter permanente, de seu sigilo fiscal, patrimonial e bancário, de modo a facilitar a fiscalização dos demais poderes. Quem quiser trabalhar nesse órgão deve aceitar que seu nível de privacidade será baixo. A ideia aqui é criar propositalmente um clima de “se eu não brinco, ninguém mais brinca!”, ou seja, os demais poderes, privados de utilizarem as compras públicas como fonte de corrupção, não iriam deixar que o órgão comprador passasse a fazer mal feitos. A fórmula política adotada aqui é claramente a dos freios e contrapesos, pois, parafraseando Alexander Hamilton, quando da criação da Constituição dos Estados Unidos, “somente o poder controla o poder, somente a ambição controla a ambição”[1].

Certamente nenhum político corrupto gostaria de haver um burocrata independente entre ele as chaves do cofre. Quando era gestor público do Estado de São Paulo, pude perceber como os gestores políticos desconfiam e temem os funcionários concursados. Mesmo havendo uma hierarquia formal entre o gestor eleito (ou indicado) e os servidores estáveis do órgão em que ele atua, sempre imperava a desconfiança entre esses dois setores. Essa relação era totalmente diferente entre os políticos e os funcionários “em cargos de confiança”. Pude perceber em minha experiência que a fidelidade entre os comissionados e os líderes políticos é praticamente absoluta. Afinal, o funcionário sabe que pode ser demitido a qualquer hora, sem necessidade de explicação, pelo governante. Já os funcionários estáveis tinham o direito de dizer “não”, o que irritava profundamente os gestores políticos. Se as coisas eram assim dentro de um órgão que está subordinado formalmente aos políticos, imagine como seria em um órgão que possui garantia de independência legal.

            Depois da Corrupção.

A proposta apresentada aqui é muito poderosa contra a corrupção. Apesar de não ser propriamente uma reforma política, a proposta altera profundamente as regras do jogo político. Sem a possibilidade de usar as compras e contratações como fonte de renda privada, os políticos teriam muita dificuldade para financiar as campanhas eleitorais. Se a regra acima for aprovada, no dia seguinte também seria aprovado o financiamento público de campanhas; algo que já está ocorrendo desde que o Supremo Tribunal Federal proibiu as doações empresariais, em 2015. Os partidos que agora não tem uma ideologia clara e são os aliados de qualquer governo também estariam com os dias contados. Esses partidos sobrevivem negociando cargos e, através desses cargos, renda para os políticos e suas campanhas. Sem a possibilidade de tirar receita para as campanhas dos cargos de indicação, os partidos teriam que ter uma ideologia bem mais clara e chamativa para continuar a ganhar as eleições. A adesão automática de certos partidos aos governos também deixa de ser tão interessante sem as “boquinhas”. Pelo lado ruim, os governantes do Poder Executivo passariam a sofrer uma oposição bem mais dura, o que poderia causar uma certa instabilidade política no curto prazo.

            Mas vai dar certo mesmo?

            Em minha experiência, as propostas de reforma institucional sempre passam por duas fases. Quando elas aparecem pela primeira vez e são mera possibilidade teórica, todos dizem “isso não muda nada, eles vão dar um jeito de manter as coisas exatamente como estão”. Porém, quando ela vira uma proposta legislativa concreta e tem chances reais de ser aprovada, o discurso muda para o exato oposto: “essa proposta é muito radical, se ela for implementada vai mudar demais nossa dinâmica social e não vamos aguentar a mudança!”. Atualmente, é bem possível que você, leitor, esteja na primeira fase, duvidando que a mera criação de um órgão comprador vai fazer diferença para um problema tão antigo e profundo quanto a corrupção. Mas acredite, isso muda totalmente as regras do jogo! Talvez um exemplo histórico ajude a te convencer. Até os anos de 1930, as eleições brasileiras eram conhecidas por serem violentas, desorganizadas e extremamente corruptas. Era a época do “voto de cabresto”, do “coronelismo”, da “política dos governadores”, da “República do Café-com-Leite”. Durante toda a República Velha, não houve nem sequer um único (nem umzinho!) caso de um governador ou de um presidente que não fizesse seu sucessor. Até mesmo Washington Luís, que traiu a classe política mineira e indicou um sucessor paulista à presidência, conseguiu ganhar a eleição (sendo em seguida derrubado por Getúlio Vargas na revolução de 30). Tudo isso mudou completamente com a Constituição de 1932. Quais foram as fórmulas mágicas dessa Constituição? Foram duas: a instituição do voto secreto e da Justiça Eleitoral – ligada a um Poder independente; no caso, o Poder Judiciário. Antes de 1932, era o próprio poder que organizava suas eleições: a presidência organizava as eleições para presidente, o Congresso organizava as eleições para deputados e senadores etc. Quando os políticos foram expropriados do poder de organizar as suas próprias eleições, o processo eleitoral passou a ser muito mais honesto e confiável. Hoje, o Brasil tem uma das eleições mais bem organizadas do mundo. O nosso sistema é muitíssimo mais bem organizado que o sistema americano, para ficar em só um exemplo. Se a criação de um órgão independente consertou as eleições, que afetam muito mais diretamente os interesses dos políticos, o que não fará pelas compras e contratações públicas?

            Um amigo meu me disse a seguinte frase, quando lhe disse essa ideia: “você fica falando essas coisas em voz alta, logo vão querer te matar!”. Se eu ou mais alguém estivermos sendo ameaçados por causa dessa proposta, significa que ela tem chances de ser aprovada;  se Deus quiser, amém, saravá!

            Porém, fica mais uma dúvida: a proposta tem chances de ser aprovada (sem uma revolução armada)? A resposta é “talvez”. Vou falar sobre isso em outro post.


[1] “Porém, o verdadeiro meio de impedir que os diferentes poderes irem se acumulando nas mesmas mãos consiste em dar àqueles que o exercessem meios suficientes e interesses pessoal para resistirem às usurpações. Nesse caso, como em todos os outros, os meios de defesa devem ser proporcionais aos perigos de ataque; é preciso opor ambição a ambição (…)”. (O Federalista. Cap LI, grifo nosso).

Porque algumas discussões são tóxicas

Beyoncé vai do afrofuturismo à Bíblia em 'Black is King'; veja ...

A recente polêmica envolvendo a antropóloga e historiadora Lilia Schwarcz é só um exemplo de algo que se tornou comum nos dias de hoje: as discussões tóxicas. Por regra, nesse tipo de discussão não há ganhadores, somente perdedores. Todos perdem a paciência, o bom humor e, em casos mais graves, amigos e empregos. Muito raramente alguém muda de opinião ou tem a sensação agravável de “ter crescido com o debate”. Não! O que sobra são só choro e ranger de dentes. Mas a questão que fica é: por que isso ocorre? Por que algumas discussões se tornam tóxicas? Uma resposta seria a falta de empatia das discussões das redes sociais, onde a falta da presença física faz com se esqueça que quem está do outro lado é um ser humano. Realmente isso aumenta a frequência das discussões tóxicas, mas não é de forma alguma a única explicação. Tanto é assim que tanto eu mesmo, como provavelmente você também, leitor, já teve discussões tóxicas ao vivo e a cores. Tem algo mais ai!

Em minha visão, as discussões tóxicas ocorrem quando se unem dois fatores: um tema eminentemente subjetivo e a visão de que o lado perdedor do debate é moralmente um “monstro”. Vamos por partes! Alguns tópicos de debate são intrinsicamente subjetivos,  no sentido de que se referem a opiniões e não fatos objetivos. Não se trata de algo que se pode obter uma prova cabal de que é desta ou daquela forma. Pense em um julgamento onde se está discutindo se fulano matou sicrano. O tópico é objetivo: ele matou ou não matou. Pode-se, em tese, se chegar a alguma conclusão com base em evidências materiais, como fotos, impressões digitais, etc. Já a discussão de se Beyoncé é ou não uma boa cantora é um tópico subjetivo. Não se pode “provar” que ela é boa ou ruim. Tudo vai depender do gosto de quem ouve, que, como sabemos, é completamente particular. Esse tipo de discussão não pode chegar a um fim “objetivo”.

                O segundo elemento da discussão tóxica é a visão de que o perdedor do debate é alguma espécie de “monstro”. Normalmente as discussões se cantores são bons, ou se filmes são bons, não leva a considerar quem discorda uma pessoa vil. Em geral, os debatedores “concordam em discordar” e cada um continua com sua opinião. Já a discussão se fulano matou sicrano pode levar a considerar fulano um monstro: uma pessoa desprezível, que deve ser condenada pela sociedade. Mas discussões sobre assassinatos normalmente são objetivas. Fulano de fato matou ou não matou sicrano. Esse tipo de discussão, realizada em tribunais, costuma ser muito dura, mas não tem características de discussões tóxicas. Igualmente, discussões objetivas e que o lado “perdedor” não é considerado um monstro, também não são tóxicas. A discussão sobre onde deixei minhas chaves (se no carro ou no trabalho) não é tóxica, pois ela é objetiva e trivial. As discussões científicas (apesar de não serem triviais) estão nessa categoria: elas são objetivas e o lado perdedor não é (ou não deveria ser) considerado um monstro.

                A situação muda completamente quando a discussão é subjetiva e o perdedor é considerado um monstro. Nesse caso, como falado acima, não há uma forma de por um fim objetivo à pendenga. Também, ninguém quer perder a discussão, pois isso significaria ser considerado um monstro. Os debatedores vão manter seu ponto até o fim e escalar a discussão até onde for moralmente possível, ou então ir além. O resultado será quase sempre improdutivo e destrutivo. Tóxico!!

                O que fazer então, seu eu me ver em uma discussão tóxica?

         A forma mais simples de “desarmar” uma discussão tóxica é atacar seu segundo pilar. Raramente podemos mudar a natureza do tópico, transformando um assunto subjetivo em objetivo. É muito mais fácil mudar os termos do debate deixando de considerar o lado oposto um monstro moral. Taxar o outro de racista, nazista, corrupto, (coloque seu monstro favorito aqui), é a porta de entrada para a câmara de gás das discussões. Cabe parar por um minuto e pensar se esses adjetivos cabem ou se são apenas fruto da empolgação de ganhar o debate. No caso de Lilia Schwarcz, uma pesquisadora de longa estrada em estudos raciais, taxar ela de racista foi completamente injusto.

                Mas e se meu debatedor for realmente um monstro? Nesse caso, melhor realmente pensar se o debate deve começar. Discutir com monstros dificilmente traz algum benefício. Se o monstro for do tipo “troll” ela vai usar o debate para se divertir às suas custas e se vangloriar disso com seus companheiros trolls.

                Mas e se eu precisar debater com o monstro, pois ele está convencendo gente boa de algo que eu discordo totalmente? Nesse caso, minha amiga, você tem um problema sério em mãos…

Olá mundo!

Olá mundo!

Eu criei esse site há um bom tempo atrás, mas nunca realmente escrevi nada nele. A partir de agora isso irá mudar! pretendo escrever aqui regularmente. Os meus interesses são política, ciência política, desenvolvimento econômico, políticas públicas, filosofia da ciência e filosofia das ciências sociais. Enfim, é esse é um blog para falar sobre meus interesses acadêmicos.

O nome desse site é uma referência a um livro de um dos meus filósofos favoritos, Karl Popper.

A frase que estava na orelha desse livro (abaixo) é um dos primeiros contatos que tive com Popper, enquanto trabalhava na biblioteca da FFLCH como guardador de livros nas estantes. Eu aproveitava meu trabalho para ler as orelhas e contracapas dos livros da seção de filosofia. Acho que a orelha de “Em Busca de um Mundo Melhor” é um bom resumo da minha proposta de atuação intelectual e política.

Aos que quiserem ler minhas ideias, fica o convite para comentar, criticar e sugerir. Me mande uma mensagem que, na medida do possível, irei ler e responder.

Vamos juntos, Em Busca de um Mundo Melhor!

“Penso que só há um caminho para a ciência ou para a filosofia: encontrar um problema, ver a sua beleza e apaixonar-se por ele; casar e viver feliz com ele até que a morte vos separe -a não ser que encontrem um outro problema ainda mais fascinante, ou, evidentemente, a não ser que obtenham uma solução. Mas, mesmo que obtenham uma solução, poderão então descobrir, para vosso deleite, a existência de toda uma família de problemas-filhos, encantadores ainda que talvez difíceis, para cujo bem-estar poderão trabalhar, com um sentido,até ao fim dos vossos dias.”  (Karl Popper)